quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Mornas eram as noites: Liberdade adiada

Trabalho individual de língua portuguesa

Ailine Correia Rocha Afonso

Liberdade adiada
Sentia-se cansada. A barriga, as pernas a cabeça, o corpo todo era um enorme peso que lhe caía irremediavelmente em cima.
Esperava que qualquer momento o coração lhe perfurasse o peito, lhe rasgasse a blusa.
- Como seria o coração?
- Teria mesmo aquela forma bonita dos postais coloridos?
- Seriam todos os corações do mesmo formato?
- ...será que as dores deformam os corações?
Pensou em atirar a lata de água ao chão, esparramar-se no liquido, encharcar-se no liquido,  fazer-se lama, confundir-se com aqueles caminhos que durante anos e mais anos lhe comiam e mais anos lhe comiam a sola dos pés, lhe roubavam as forças.
Imaginou os filhos que aguardavam e já deviam estar acordados. Os filhos que ela odiava!
Aos vinte e três anos disseram-lhe que tinha o útero descaído. Bom seria se caísse de vez! Estava farta daquele bocado de si que ano após ano, enchia, inchava, desenchia e lhe atirava para os braços e para os cuidados mais um pedacinho de gente.
Não. Não voltaria para casa.
O barranco olhava-a, boca aberta, num sorriso irresistível, convidando-a para o encontro final.
Conhecia aquele tipo de sorriso e não tinha boas recordações dos tempos que vinham depois. Mas um dia havia de o eternizar. E se fosse agora, no instante que madrugava? A lata e ela, para sempre, juntas no sorriso do barranco.
Gostava da sua lata de carregar água. Tratava-a bem. Ás vezes, em momentos de raiva ou simplesmente indefinidos, areava-a uma, dez, mil vezes, até que ficava a luzir e a cólera, ou a indefinição se perdiam no brilho prateado. Com fundo de madeira que tivera que lhe mandar colocar, quando começou a espirrar água e já não suportava uma torcida de farrapo, ficou mais pesada, mas não eram daí os seus tormentos.
Atirar-se-ía pelo barranco abaixo. Não perdia nada. Alías nunca perdeu nada. Nunca teve nada para perder.
Disseram-lhe  que tinha perdido a virgindade, mas nunca chegou a saber o que aquilo era.
À borda do barranco, com lata de àgua à cabeça e a saia batida pelo vento, pensou nos filhos e levou as mãos no peito.
O que tinha a ver os filhos com o coração?  Os filhos...Como ela os amava, Nossenhor!
Apressou-se a ir ao encontro deles. O mais novito devia estar a chamar por ela.
Correu deixando o barranco e o sonho de liberdade para trás.
Quando a encontrei na praia, ela esperando a pesca, eu atrás de outros desejos, contou-me aquele pedaço da sua vida, em resposta ao meu comentário de como seria bom montar numa onda e partir rumo a outros destinos, a outros desertos, a outros natais.

Biobibliografia de Dina Salústio

Escritora e poetisa cabo-verdiana nascida em 1941, em Santo Antao/ Cabo Verde, com o nome de Bernardina Oliveira, adoptando depois o pseudônimo de Dina Salústio.
Foi professora, assistente social e jornalista, tendo trabalhado em Cabo Verde, assim como em Portugal e em Angola. Foi também produtora de rádio, dirigindo um programa radiofônico dedicado a assuntos educativos.
Em 1994 publicou uma colectania de 35 contos, “Mornas eram as noites”, que lhe valeu o Prémio de Literatura Infantil de Cabo Verde.
Estriou-se no romance, em 1998, “A Louca do Serrano” e este foi considerado o primeiro romance feminino na literatura cabo-verdiano.
Em 1999 ganhou o 3º prémio de literatura infantil de Cabo Verde, dos PALOP.
Trabalhou no Ministério de negócios estrangeiros e desempenha actualmente (2005) o cargo de conselheira do Ministério da Cultura, em Cabo Verde.  

Interpretação do texto
•    Todos os textos tem um tema. Este fala sobre um momento da vida de uma mulher, trabalhadora, dona de casa, mãe e com uma grande fome pela liberdade.
•    Cansada da sua vida dependente das necessidades  da sua família, decide suicidar-se, mas ao lembrar-se de seus filhos, percebe que não são só eles que precisam dela mas também ela precisa deles para ser feliz.
•    Sendo assim, podemos relacionar o titulo com o texto. ”Liberdade adiada”, porque a personagem principal, farta do seu quotidiano, escolhe abandonar tudo para tirar todos os pesos e responsabilidades de seus ombros, mas quando pensa naquilo que realmente e importante para ela, tenta apagar estes pensamentos de responsabilidades, pensamentos de sua cabeça e concentrar naquilo que realmente precisa, escolhendo então a responsabilidade, a liberdade.
•    O narrador do texto é participante e homodiégetico, porque apesar da historia não contar o momento da vida dele, ele reconta esse momento da viva de alguém por suas próprias palavras, e o texto termina com uma observação feita por ele, que serviu de comentário a historia que ele tinha acabado de ouvir, naquele dia, naquela praia.  O narrador também é também omnisciente, porque descreve os pensamentos da personagem principal.
•    As personagens do texto são: a mulher, os seus filhos e o narrador.
•    A personagem principal em “Liberdade adiada” é a mulher que queria se suicidar. O narrador é presente como personagem secundaria e os filhos figurantes.
•    A personagem principal sentia-se cansada, angustiada, confusa, triste. Já tinha mais de 23 anos e, era mãe e chefe de família e um pouco ignorante.
•    O texto ocorre em duas ações. A principal em que fala da mulher a pensar na sua vida e a beira de um barranco. a secundaria na praia, esperando a pesca, na companhia do narrador.
•    O texto ocorre a beira de um barranco, ou seja, precipício(micro-espaco) e na praia(macro-espaco).
•    O tempo do texto e após 23 anos de vida da personagem principal, numa época da pesca, em que o narrador relembra uma historia de um momento já vivido, mas não por ele.
•    A função da linguagem predominante no texto é emotiva.


1.    Os modos de expressão literária presentes no texto:
A narração é feita  na 1ª pessoa( accao principal) e na 3ª pessoa( accao secundaria)
Ex.:
    Narração na 1ª pessoa: “ Quando a encontrei na praia(...) a outros natais.”
    Narração na 3 ª pessoa: “Sentia-se cansada.”
                    O dialogo não esta presente entre as personagens.
           O texto inteiro faz parte de um momento de reflexão por parte das personagens, podendo encontrar alguns comentários.
Ex.: “(...) em resposta ao meu comentário de como seria bom montar uma onda e partir do rumo a outros destinos, a outros desertos, a outros natais.”
O nível de língua do texto é norma, padrão, porque apresenta frases simples vocabulários do dia- a- dia, uma temática não muito complexa.

2.    Figuras de estilo
O texto apresenta varias figuras de estilo.
    Eufemismo- a personagem transmite uma ideia desagradável de uma forma mais suave  (ex.: “A lata e ela, juntas no sorriso do barranco.”)
    Perífrase- dizer por varias palavras o que podia dizer em poucas (ex.:”Estava farta daquele bocado de que ano após ano, enchia, inchava, desenchia e lhe atirava para os braços e para os cuidados mais um bocadinho de gente.”)
    Personificação- dar vida e características humanas a objetos inanimados ou animais (ex.: “O barranco o olhava-a boca aberta, num  sorriso irresistível, convidando-a para o encontro final.”)
   Enumeração- apresenta sucessivamente vários elementos da mesma natureza (ex.: “A barriga, as pernas, a cabeça, o corpo todo era um enorme peso que lhe caia e irremediavelmente em cima”.
           
 Resumo do texto
Sentia-se muito cansada, com a sensação que o coração lhe iria sair pelo peito a qualquer momento.
Varias questões sobre o coração ecoavam na sua cabeça.
Pensou em deitar-se no chão e camuflar-se com o caminho que lhe cansava durante tanto tempo.
Odiava os seus filhos, que já deviam estar acordados à espera da sua chegada. Desde os vinte e três anos que lhe tinham dito que tinha o útero descaído e queria ela que ele caísse mesmo de vez, para impedir de engravidar mais vezes.
Decidira então não voltar para casa.
O precipício a seu lado, atraia-lhe como se chamasse pelo seu nome. Recordações pouco agradáveis vieram a sua memoria. A ideia de saltar daquele precipício invadiu a sua cabeça.
A única companhia que tinha naquele momento era a sua lata de carregar água. Servia para descontar a sua raiva em alguns momentos da sua vida, talvez fosse por isso que começara a deixar cair água e ela tivera que mandar por fundo de madeira, tornando-a mais pesada.
A ideia de se suicidar continuava na sua cabeça. Estava decidida. Só quando veio a imagem de seus filhos a memoria, bateu no peito, e percebeu que afinal os amava, e muito!
Correu então para casa, ao encontro dos de seus filhos.
Sentou-se na praia à espera da pesca, desabafando. Como seria bom abandonar e recomeçar tudo e recomeçar a vida em outros destinos.

Conclusão
Finalizei então o meu trabalho. Posso concluir que ao estudarmos de uma forma mais profunda um texto, fica mais fácil a interpretação do mesmo, ou seja, entender melhor a ideia que o texto nos quer transmitir. Todos os textos tem algo a dizer, uma mensagem a passar. “Liberdade adiada” transmite que devemos amar e valorizar a vida que temos, pois é no momento em que queremos mudar tudo, que percebemos o quanto precisamos daquilo que já temos.
Espero ter alcançado as expectativas do professor em relação ao trabalho, e sinto satisfeita com o resultado final.
“Liberdade não é sentirmos- nos livres no mundo, é sentirmos- nos livres dentro de nós mesmos.”

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